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A importância das ações afirmativas para os Povos Ciganos: o exemplo da UNEB!

“O entendimento da diferença é uma responsabilidade compartilhada, que exige um mínimo de vontade de alcançar o desconhecido”. (Trinh T. Minh-há) / FOTO: Bárbara Jardim

Por Redação em às | Foto: Divulgação

FOTO: Bárbara Jardim
 

Peço licença para anotar reflexões narrativas em formato de escrevivências, inspirado por Conceição Evaristo (2020). Tomo também de empréstimo a Djamila Ribeiro (2017), os ensinamentos a respeito do "lugar de fala", no sentido de compreendermos como determinados lugares sociais que alguns sujeitos ocupam lhes restringem oportunidades. Não apenas como experiências individuais.

 

Os acessos que alguns grupos étnicos de ciganos conseguiram a partir dos anos 80 refletem novas formas de sobrevivência. Um exemplo é o meu grupo familiar de ciganos da etnia Caló - "Calón". Espalhados por diversos estados, a maior parte vive o nomadismo circense, itinerantes, em diversos Estados brasileiros. Alguns sedentários ou semisedentários. Alguns tiveram acesso ao ensino superior, tornando-se profissionais civis em diversas áreas. Apesar de experienciar outras formas de organização social, não perdermos os vínculos afetivos, os hábitos, a conviência e a união. Entretanto, nós e muitos outros não estamos inclusos nos dados, estimativas e pesquisas quantitativas sobre a população cigana no Brasil. Em formulários, documentos e questionários, nossas etnias são parte das categorias “outros”, “etc”. Isso precisa mudar, concorda?

 

Sobre os estudos ciganos, Cristina da Costa Pereira, nascida em 1949, detém, possivelmente, a maior quantidade de escritos, e uma história de mais de 30 anos de trabalho em contribuição às comunidades ciganas, sendo a primeira mulher a pesquisar e publicar livros com a temática. Foram sete com a temática “ciganos brasileiros”, além de artigos, entrevistas e palestras. Em entrevista para O Globo (2014), alertou: “o seu vizinho pode ser um cigano!”.

 

 

A história do meu grupo familiar de ciganos calóns - artistas circenses, e de outras ciganas no Brasil demonstram que a observação de Pereira faz muito sentido. É fato que alguns tiveram acesso ao ensino superior e galgaram profissões diversas, vivendo de forma sedentária ou semissedentária. O mais destacável deles é Jucelho Dantas da Cruz, 58 anos, da etnia Calón, residente em Feira de Santana, na Bahia. Doutor em Zoologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), atualmente é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Biologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs).

 

Em entrevista concedida à jornalista Vanessa Fajardo, do portal G1.globo.com (2012), Jucelho relata que seu exemplo influenciou os sobrinhos: "Tenho uma profissão que amo, mas nada disso seria possível se não tivesse galgado os degraus. Influenciei meus sobrinhos a estudar e de certa forma sirvo como espelho entre os ciganos. É como se eu fosse um troféu, mostro o valor da educação". E destacou o orgulho que sente pelo feito. "Sou cigano de corpo e alma e onde estiver sempre vou me orgulhar de dizer isso, como faço aos meus alunos. Luto para quebrar barreiras. Ainda mantenho os meus costumes, falo o dialeto cigano, gosto de dormir em ambientes abertos, barracas e não sou apegado a bens materiais. [...]". Ele reconhece as dificuldades que as mulheres ciganas enfrentam para o acesso à educação: "Meu caminho seria mais difícil se fosse mulher. As meninas aprendem o nome e já saem da escola. Os ciganos são muito machistas e elas são discriminadas. Não concordo, elas não podem ser um objeto decorativo."

 

Agora temos o exemplo de uma mulher a ingressar no ensino superior. Por meio de entrevista conferida à jornalista Lina Magali, do portal Secom.gov.ba.br (2019), a ativista cigana Lêda Coutinho, que vive atualmente com a família em um rancho na cidade de Camaçari-BA, a 47 KM de Salvador, relatou os desafios das mulheres ciganas. Ao participar de uma roda de conversa no de 24 de maio de 2019, realizada pelo Governo do Estado da Bahia, em comemoração ao Dia Nacional dos Povos Ciganos, a estudante de Direito, afirmou que foi preciso enfrentar imposições da tradição para estudar e casar com um homem não cigano. Na sociedade, ela e seus familiares continuam a sofrer com o racismo. “Eu mato um leão por dia pelo fato de ser mulher e ser cigana. Onde a gente passa vestida de cigana, se passa em frente a uma loja, as pessoas já olham achando que vamos roubar. Se tem uma criança, já ficam segurando na mão achando que a gente vai levar a criança embora, como se fôssemos marginais. Isso passa de séculos em séculos e não muda”. Contou Lêda, completando que “ser cigano é um modo de vida, uma cultura, é ser diferente dentro de uma população”.

 

 

As inúmeras dificuldades enfrentadas por nós para a efetivação do direito à educação básica são amplificadas quando se trata do Ensino Superior, acesso e permanência. Iniciou-se nesta década um processo de transformação a partir da inclusão de grupos étnicos ciganos nos sistema de ações afirmativas - conforme adotado pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a partir da Resolução nº 1.339/2018, quando a instituição aprovou a reservas de 40% das vagas nos cursos de graduações destinadas para negros (as) e 5% de sobrevagas para indígenas; quilombolas; pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades; transexuais, travestis e transgêneros, incluindo os ciganos de forma pioneira, para ingresso a partir de 2019. No mesmo caminho, estão a Universidade Federal do Sul da Bahia (Ufsb), Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), e Universidade Estudal de Minhas Gerais, (Uemg) que oportunizaram cotas raciais para ciganos em seus processos seletivos para ingresso em 2020.

 

Uma das definições mais referenciadas do conceito de ações afirmativas é a de Joaquim Bendito Barbosa Gomes (2001), que as define como políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Para Alvino Oliveira Sanches Filho (2013), ações afirmativas são esforços adotados para expandir as oportunidades para mulheres ou minorias raciais, étnicas ou de origem nacional, levando o pertencimento a estes grupos em consideração na decisão sobre distribuição de bens e serviços.

 

Vanessa Regina Eleutério Miranda e Santuza Amorim da Silva (2017), apontam como exemplo as conquistas alcançadas por via de políticas como a lei 10.639/2003, que tipificou dos crimes de racismo; lei 12.288/1010 para garantia e defesa da igualdade de direitos e de tratamento, reiterando a importância da criação do sistema nacional para a reserva de vagas - cotas, para o ingresso no ensino superior após a lei 12.711/2012. Destacando o Estatuto da Igualdade Racial - lei 12.288/2010 - esta estabelece que: “É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais (Art. 2º da lei 12.288).

 

Outra ação importante que nos lembram Miranda e Silva (2017), foi a Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016 aprovada e sancionada durante atuação do Ministro da Educação Aluísio Mercadante, estabelecendo que as Instituições Federais de Ensino Superior (ifes) deveriam apresentar propostas de criação de Ações Afirmativas nos Programas de Pós-Graduação, o que tem sido debatido no interior das ies, ganhando cada vez mais espaço nas discussões sobre a agenda democrática da Universidade.

 

Em 2018, início da atual gestão, como resultado das reivindicações históricas dos Movimentos Negro, e em reconhecimento às lutas, o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), através da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPPIR) criou o Guia de Orientação da Promoção da Igualdade Racial, elaborado por Helyzabeth Kelen Tavares Campos.

 

De acordo com o documento, o Estatuto da Igualdade Racial – Lei nº 12.288/2010 – instituiu o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – SINAPIR como forma de organização e articulação federativa voltada à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnico-raciais no Brasil, sendo este um instrumento fundamental para a institucionalização da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a partir da adesão de Estados, DF e municípios ao sistema, fortalece-se a atuação conjunta para a implementação de ações e potencialização de resultados. (BRASIL, 2018).

 

O Brasil se formou a partir de diversas raças e etnias, sendo o segundo país do mundo em população da raça negra. Ao longo da história, pretos e pardos sofrem com a aculturação, com violências generalizadas e com a exclusão social; vivendo realidades distintas, de acordo com fatores geográficos, políticos e econômicos ao longo da história. O surgimento do Brasil como Estado-nação se deu, inicialmente, pelo encontro dos europeus com a população nativa no século XVI. Para suprir as necessidades de mão de obra nos empreendimentos da colônia, os portugueses trouxeram da África, como escravos, numa migração forçada, enormes contingentes de pessoas. Os africanos que vieram por meio do comércio de escravos tornaram-se os mais numerosos membros do Novo Mundo, tanto no Norte quanto no Sul da América. Ao longo da história, juntaram-se aos portugueses, indígenas e africanos, pessoas das mais diversas origens, formando o povo brasileiro. Este intercâmbio de povos com experiências históricas distintas enriqueceu-se com trocas de conhecimentos, resultando no vasto patrimônio cultural que se apresenta hoje no Brasil. No entanto, o grau de desigualdade que sempre marcou este contato deixou marcas profundas que ainda devem ser superadas. (BRASIL, 2018).

 

A população cigana, praticamente invisível em termos oficiais, tem história, hábitos, costumes, língua e tradições próprias que os distinguem e os identificam, é também vítima de discriminações, perseguições e exclusão social; A população negra, predominante no país, é a mais pobre, mais jovem, a que tem mais filhos, e está mais vulnerável à mortalidade por causas externas, especialmente homicídios. Observa-se também uma proporção bem mais elevada de óbitos entre jovens de 15 a 29 anos, indicando que população negra tem expectativa de vida menor que a população branca. Isto reafirma que o Estado Brasileiro tem que ofertar para esta população onde os negros são maioria, além de segurança, educação, trabalho e renda, os incluindo nos demais serviços públicos. (BRASIL, 2018).

 

Assim, o documento reconhece que população cigana é historicamente vítima de discriminação, perseguições e exclusão social por apresentarem história, hábitos, costumes, língua e tradições próprias e múltiplas. Por ciganos há de se compreender uma pluralidade de grupos que formam uma “unidade" a partir de diversidades e particularidades culturais de grupos ou famílias. O termo cigano, gitano, gitan, zigeuner e gypsies são nomenclaturas utilizadas para homogeneizar estes grupos étnicos, em sua grande maioria nômades, que passavam pela Europa, a partir do século XV, com hábitos e culturas diferentes da existente nestes locais e época. A denominação dada pelos europeus a estes grupos, a partir desta generalização linguística, não dá conta do verdadeiro ser cigano, das culturas, diversidades e particularidades.

 

Contemplado pelo sistema de cotas do Governo Federal para alunos da rede pública, ingressei, em 2006, através de bolsa integral do Programa Universidade Para Todos (PROUNI), no curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Faculdade Anísio Teixeira (FAT), concluído em 2010. De igual modo, conquistei uma vaga para estudar Artes Cênicas – Interpretação Teatral, na Ufba, em 2011. Minhas experiências profissionais no âmbito do jornalismo impresso, colocaram-me frente a desafios pautados no tema ciganos, nos jornais Folha do Estado da Bahia (2009/2010) e A Tarde (2018/2019), periódicos que, muito evidentemente, expunham considerável escassez de dados demográficos sobre esta etnia – também meu povo! Assim, surgiu o questionamento: por quais motivos os ciganos ainda não foram integrados nas ações e políticas afirmativas das universidades brasileiras, a exemplo de outros grupos étnicos, como os povos indígenas e quilombolas?

 

O duplo interesse de compreender o processo histórico de exclusão social e estudar o percurso da inserção dos ciganos brasileiros nas políticas e ações afirmativas de acesso às universidades, foram as molas propulsoras para a construção do projeto de pesquisa "Das lonas às Universidades: (des) integração das etnias ciganas nas ações afirmativas do Ensino Superior no Brasil”. Com estes propósitos iniciei, em setembro de 2020, o mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade, linha de pesquisa Movimentos Sociais, Políticas Públicas, Desenvolvimento Nacional e Universidade, PPGEISU-IHAC/UFBA, através da oferta de 50% das vagas para ações afirmativas.

 

Desta forma, as políticas afirmativas foram fundamentais em minha trajetória, viabilizando o acesso ao ensino superior, diante das desafiadoras condições nas quais percorri o caminho escolar, itinerante, estudando em cada cidade que o circo passava, às vezes uma, duas, ou três semanas em cada cidade, por diversos Estados. Oportunizaram a transformação do meu destino através da educação. O progresso dos ciganos nas ações afirmativas certamente contribuirá para as necessárias transformações das situações de vulnerabilidade social de muitas comunidades ciganas no Brasil.

 

As tradições se interpõem, muitas vezes, principalmente para as mulheres, como impeditivos para o acesso e permanência nos sistemas de educação. Portanto, as políticas públicas e as ações afirmativas em direção ao acesso e permanência das ciganas à educação fundamental, básica, média e superior, bem como a inclusão dos estudos étnicos e raciais desde o início da formação escolar, são fundamentais para superarmos desafios que nos são impostos, concretização de oportunidades, e, por conseguinte, ocuparmos espaços de formação cidadã, a exemplo da Universidade.

 

A educação como estratégia para a desenvolvimento social é defendido por destacáveis educadores. Em alinhamento com Maria do Carmo Gomes (2013), as oportunidades de aprendizagem ao longo da vida são deveras importantes para a melhoria das condições de vida das pessoas ciganas, e, muito particularmente, das mulheres ciganas, na medida em que a escolarização, a formação e a qualificação poderão possibilitar a inserção no mercado de trabalho e a mobilidade social (Magano, 2010; 2014). Nesse sentido, Almeida Filho (2007, p.103) ressalta a função da universidade, que deve operar como instrumento de transformação social abrindo-se às minorias, “a reparação pela via da educação é uma obrigação social de toda instituição de ensino superior que mereça o nome de Universidade”.

 

A filósofa e feminista preta Djamila Ribeiro (2017, p.29), nos ilumina para descolonizarmos o conhecimento, defendendo que precisamos nos ater à identidade social, não somente para evidenciar como o projeto de colonização tem criado essas identidades, “mas para mostrar como certas identidades têm sido historicamente silenciadas e desautorizadas no sentido epistêmico, ao passo que outras são fortalecidas”. A autora sugere que o lugar de fala no sentido prático é aludido à medida que observamos o epistemicídio e damos voz às culturas historicamente silenciadas: Não estamos falando de experiências de indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania. Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades. (RIBEIRO, 2017, p. 61).

 

Boaventura de Sousa Santos e Naomar de Almeida Filho (2008, p. 172) assinalam que “precisamos construir no Brasil um tipo diferente e renovado de instituição acadêmica, capaz de atuar como instrumento de integração social e política entre países, culturas e povos”. Desta forma, é preciso conscientizar e mobilizar as sociedades, parlamentares, governos, instituições públicas e privadas, e as comunidades escolar e científica, quanto à relevância social da inserção dos ciganos nas políticas públicas, bem como a integração das etnias Romás (ciganas) nas políticas afirmativas das universidades no Brasil, além da continuidade, ampliação, e disseminação destas ações estratégicas nas Instituições públicas e privadas de ensino superior. Graduação e Pós-graduação. Afinal, preconiza o Art. 205. da Constituição Federal de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

 

Em concordância com Cristina da Costa Pereira (2018) “a ciganologia só adquire sua plenitude como ciência quando os ciganos escreverem suas próprias histórias”. Ademais, como nos ensina Paulo Freire (2000) - Patrono da Educação Brasileira - "é preciso que a educação apareça como fonte de libertação, práxis libertadora, conduzindo o sujeito a refletir sobre a situação em que se encontra e então indignar-se, pois a autopercepção, reflexão e indignação são elementos complementares e propulsores para as transformações sociais, capazes de mudar corações e mentes".

 

IMPORTANTE

 

Não existem pesquisas atuais sobre o número de ciganos ou de acampamentos ciganos no Brasil, o que evidencia mais uma vez a exclusão e o não reconhecimento destes povos e de sua cultura para a formação identitária do Brasil. Os últimos dados são de 2011 através dos resultados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que identificou 291 acampamentos ciganos no Brasil, localizados em 21 estados, e com maior concentração em Minas Gerais (58), Bahia (53), e Goiás (38), enquanto os municípios com 20 a 50 mil habitantes apresentam a maior concentração de acampamentos. Desse universo de 291 municípios que declararam ter acampamentos ciganos em seu território, 40 prefeituras afirmaram desenvolver políticas públicas para os povos ciganos, o que corresponde a 13,7% desses municípios. Em relação à população cigana total, estima-se que são mais de meio milhão no País, mas não há informações quanto aos gêneros (BRASIL, 2011).

 

FOTO: Bárbara Jardim
 

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